A "Jornada do Escritor", de Christopher Vogler
 



Dica de Escrita

A "Jornada do Escritor", de Christopher Vogler

Emilly Garcia para o Escrita Criativa


Imagine o enredo: uma garota comum vivendo uma vida comum. De repente, algo inusitado acontece e abala a rotina dela. Então, a garota é convidada a embarcar numa aventura que mudará sua vida para sempre.

Esse início de história soou familiar? Não por acaso, essa estrutura narrativa bastante comum em histórias de ficção tem a ver com a jornada do herói, que Joseph Campbell descreveu em "O herói de mil faces" (1949).

Algumas décadas depois, o norte-americano Christopher Vogler, a fim de analisar a ocorrência do modelo de Campbell em produções audiovisuais, debruçou-se sobre roteiros de cinema nos mais diversos gêneros, do romance à fantasia, e identificou inúmeras semelhanças entre os arquétipos e os estágios da jornada do herói. Dessa análise resultou a sua obra mais famosa, a "Jornada do Escritor: estrutura mítica para escritores", lançada no final dos anos 90. O livro se tornou um guia de escrita criativa para romancistas e roteiristas.

Assim como Maureen Murdock e sua "Jornada da Heroína", o autor se inspirou nos estudos de Campbell para dar vida à jornada do escritor. Roteirista e ex-professor de cinema, Christopher Vogler é também uma espécie de consultor de histórias em Hollywood. Ele já trabalhou em estúdios da Disney, Fox e Warner, e também colaborou em roteiros de produções aclamadíssimas, como "Clube da Luta" (1999) e "O Rei Leão" (1994).

No modelo proposto por Vogler, a jornada é dividida em quatro atos:



Estes quatro atos podem ocorrer em dois tipos de jornada: a exterior e a interior. Na primeira, o herói deixa o seu mundo ordinário e vai rumo a um lugar desconhecido, que pode ser uma floresta, outra cidade ou ainda um novo planeta. No segundo tipo, a jornada é baseada nas emoções do protagonista e marcada pela passagem de um estado emocional para outro, da melancolia à alegria, do desespero à esperança, para citar alguns exemplos.

Vogler analisou ainda os oito arquétipos mais recorrentes nos roteiros de cinema, sendo o Herói, Mentor, Guardião do Limiar, Arauto, Camaleão, Sombra, Aliado e o Pícaro os mais comuns. Ele percebeu que em algumas situações os arquétipos secundários também realizavam feitos heroicos, ao passo que o herói-protagonista pode acumular mais de uma característica arquetípica.

Assim, o herói pode ser, concomitantemente, "pacifista, mãe, peregrino, bufão, andarilho, eremita, inventora, enfermeiro, salvador, artista, lunático, amante, palhaço, rei, vítima, trabalhadora, rebelde, aventureiro, um fracasso trágico, covarde, santa, monstro etc".

Na jornada do escritor, os arquétipos variam em tipos e funções dramáticas. O herói, por exemplo, tem as funções dramáticas de crescimento, ação, sacrifício e a de lidar com a morte.

Quanto aos tipos, no artigo "Jornadas Fantásticas", o escritor Duda Falcão, autor do "Guia de Literatura Fantástica", apresenta uma visão geral sobre as variedades do herói, com base na "Jornada do Escritor" (Aleph, 2015).

1. Heróis voluntários: são entusiasmados e ativos. Comprometidos com a aventura. Não demonstram dúvida em relação ao chamado. Avançam com determinação e coragem em sua jornada.

2. Heróis a contragosto: são hesitantes e repletos de dúvidas. Forças externas precisam motivá-los ou empurrá-los para que embarquem na aventura.

3. Anti-herói: Não é o oposto do herói. De acordo com Vogler (2015, p. 74), é ?um tipo específico de Herói, que pode ser fora da lei ou vilão do ponto de vista da sociedade, mas que simplesmente ganha a simpatia do público?. Pode ser dividido em dois tipos: o tortuoso e o trágico ou fracassado. O anti-herói tortuoso com frequência, segundo Vogler, é honrado, mas por algum motivo se afastou da sociedade e a despreza, é rebelde e possui um forte toque de ceticismo. O anti-herói fracassado ou trágico ?nunca superou seus demônios internos, sendo humilhado e destruído por eles. Eles são charmosos e têm qualidades admiráveis, mas sua imperfeição vence no final? (Vogler, 2015, p. 75).

4. Heróis gregários: conforme Vogler (2015, p. 75), a história desses heróis se relaciona com a sua separação de um clã, uma família, uma tribo ou comunidade de um vilarejo ou cidade. Eles se aventuram solitariamente em um lugar distante, em geral retornam para o grupo do qual se afastaram. Contudo, alguns tomam a decisão de permanecer no mundo especial.

5. Heróis solitários: começam apartados da sociedade, seu habitat natural é algum local ermo, no qual vivem sozinhos. Sua jornada consiste em reentrar no mundo social, viver uma aventura em grupo. Ao final de sua saga, podem decidir retornar para o isolamento, seu estado inicial, ou, então, permanecer no mundo dos relacionamentos.

6. Heróis catalisadores: são uma exceção à regra de que heróis sempre mudam, crescem e aprendem durante a sua jornada. A personalidade do herói catalisador já está bem formada no início da história. Eles não passam por mudanças drásticas, pois sua principal função, de acordo com Vogler (2015, p. 76), é provocar mudanças nos outros.

Em resumo, para Christopher Vogler o arquétipo do herói deve ser visto e trabalhado de maneira mais ampla. Escritores e roteiristas precisam ir além do estereótipo do guerreiro, de forma a darem vida a personagens esféricos, dotados não apenas de qualidades, mas também de traumas, dilemas existenciais, agressividade, sombras e outras características antagônicas que o aproximam da realidade.

O que a jornada do escritor nos mostra é que a história se torna mais rica e interessante quando munida de particularidades do protagonista e do seu universo. Em outras palavras, aquilo que os torna únicos e, ao mesmo tempo, desperta a simpatia e a identificação com o público.

 

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